1. As origens do estado moderno
A Neopolític@ é uma linha de pensamento que buscar reinventar a política no ambiente descortinado pela acelerada globalização econômica e das relações humanas, no ambiente socio-virtual dos nossos dias. Pautada pelas imensuráveis possibilidades ofertadas pela internet, a sociedade atual – cujas raízes remontam à época da Revolução Industrial dos anos 1760 a 1840 – assiste atônita e com mal-estar (1) os seus fundamentos serem desconstruídos paulatinamente, num processo irreversível. E nesse diapasão, também a política nos estados de direito democrático sucumbem à nova ordem com perda crescente de legitimidade, credibilidade, eficiência e de sentido, em casos mais extremados.
‘A civilização humana ao longo da sua evolução tem assistido a uma luta permanente do homem pela liberdade. E em grande medida, esta caminhada está vinculada à limitação dos poderes dos governantes e do próprio estado’ (2). Três grandes acontecimentos pavimentaram esta caminhada evolutiva, e são considerados as bases históricas e políticas do chamado estado liberal moderno que nascia, e que ainda subsidia o atual sistema político-estatal contemporâneo ocidental: a) a Declaração de Direitos de 1689 na esteira da Revolução Gloriosa inglesa do ano anterior, que deu origem ao constitucionalismo, b) a Independência dos Estados Unidos da América em 1776 consolidando as ideias republicanas, o federalismo e a separação de poderes preconizada por Montesquieu, e c) a Revolução Francesa de 1789 como passagem do antigo regime para a sociedade moderna, sob o primado do conceito de soberania popular defendido por Rousseau.
2. A soberania popular, democracia e capitalismo
A soberania popular está intrinsecamente vinculada à liberdade dos indivíduos, e como expressão política e social da modernidade, a liberdade ganhou contornos mais complexos e elaborados e incorporou-se no conceito de democracia. ‘Com o passar dos anos, a busca pela liberdade transformou-se na luta democrática. Na história dos estados liberais modernos, ao lado da democracia como instrumento político da liberdade, o sistema capitalista fincou bases poderosas como sua manifestação econômica. De tal modo o capitalismo apropriou-se dos valores democráticos no mundo ocidental que se pode mesmo afirmar que a história do estado moderno e do direito por ele produzido confunde-se com a história do sistema capitalista. Não é obviamente uma afirmação tranquila e pacífica, conquanto o conceito de democracia, de liberdade e de capitalismo seja variável. Diversas culturas e ideologias nos sete continentes concebem interpretações distintas acerca destes temas, e estamos muito aquém de qualquer consenso a respeito disso. Mas sob os paradigmas que a sustentaram e que ainda prevalecem na chamada civilização ocidental contemporânea, é indiscutível que o sistema capitalista do livre mercado seja a manifestação econômica de liberdade numa sociedade de bases democráticas’ (3).
3. Política clássica x mundo virtual
A prática política contemporânea, em grande parte ainda presa aos pressupostos estabelecidos nos primórdios dos estados liberais, apresenta-se amplamente em crise, em muitos aspectos superada, num mundo cujas referências deixaram há muito aquelas de outrora. A política dos estados liberais modernos tinha como pilares fundamentais a soberania e o contêiner estatal, a democracia representativa (justificada pela necessidade de escolha de representação de segmentos da população face a dificuldade comunicacional entre os poderes constituídos e os cidadãos), os partidos – então organizados em ambientes de menor fragmentação social e com fortes conteúdos ideológicos -, e o primado da política institucionalizada no estado como condutora quase absoluta dos rumos da sociedade.
Toda esta formatação político-estatal clássica está sendo abalada, senão mesmo desconstruída, pelos avanços tecnológicos nos mais variados setores – com proeminência para as áreas das comunicações, notadamente através da internet e das redes sociais que deram origem a um novo mundo, o virtual. Queiramos ou não, essa é uma realidade que se impõe e nos atormenta, e que faz pensadores, filósofos, economistas e cientistas sociais envolverem-se em acalorados debates acerca dos tempos em que vivemos e do que está por vir.
‘A tecnologia da informação aliada aos magníficos computadores e sistemas cibernéticos está transformando o mundo de maneira acelerada, talvez mais rápida do que possamos perceber ou mesmo a ela nos adaptar, jogando por terra antigos conceitos antes mesmo que novos tenham sido elaborados para substituí-los. A informática alterou decisivamente as noções de tempo e espaço no seu mundo virtual, onde incontáveis relações de todos os matizes ocorrem modificando o modo de vida humano, levando-o a uma nova dimensão, pouco conhecida e em muitos aspectos misteriosa’ (4).
4. Admirável mundo novo
Em verdade, ‘os referenciais sobre os quais sempre pautamos nossa existência são desafiados e vão aos poucos esvaecendo… ‘. Assim, ‘o espanto do homem moderno diante da internet assemelha-se ao seu antepassado do século XIX diante das máquinas da Revolução Industrial ou dos pré-renascentistas diante das expedições marítimas. Ao seu tempo cada uma dessas invenções: computadores, máquinas de tear e caravelas, ajudaram a reformular o mundo e as relações entre as pessoas. Nem por isso o homem deixou estar no centro do processo’ (5).
Todo esse arsenal tecnológico fez ‘aflorar as diferenças, o multiculturalismo, as diversidades e a compartimentalização dos saberes em áreas cada vez mais especializadas, com linguagens e lógica próprias. As incertezas passaram a dominar o cenário, relativizando verdades e a própria ordem estabelecida, gerando na atualidade extrema complexidade e inordenação. Alteraram-se as relações entre as pessoas e delas consigo mesmo. Zygmunt Bauman (6) fala em ‘sociedade líquida’ para definir o momento que vivemos, graças ao ritmo incessante das transformações, angústias e incertezas.
Segundo Bauman, essa sociedade deu lugar a uma nova lógica, pautada pelo individualismo e pelo consumo, resultado de transformações sociais e econômicas, trazidas pelo capitalismo globalizado e a internet. As conexões estabelecidas entre pessoas são laços banais e eventuais, em relações dominadas pelos pela superficialidade das redes sociais. Como os líquidos, a nossa sociedade se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma e se solidificar, o que acontecia através dos costumes tornando-se hábitos e, em seguida, firmando-se como verdades ‘auto evidentes’. Agora, tudo tende à impermanência, aos fluxos constantes, voláteis, desregulados, flexíveis. A vida instantânea parece uma viagem infinita com múltiplas possibilidades a serem realizadas numa fração de tempo e na miniaturização dos componentes para caberem mais em menos.
É justamente para este mundo novo que as práticas político-estatais sem revelaram em grande parte superadas.
5. A superação do modelo
A pandemia que assola o planeta acelerou ainda mais o processo de transformações ao desnudar abruptamente a inocuidade de várias estruturas públicas, quase sempre muito onerosas quanto ineficientes. Não raro têm excesso de pessoal – padecem de gigantismo, estruturas deficientes e são de pouca utilidade para o fim a que se destinam.
Toda a parafernália estatal brasileira foi impelida a rever suas formas de funcionamento diante do impacto provocado pelo Covid19 e a necessidade de distanciamento social. A atividade privada igualmente foi pressionada no mesmo sentido. Em diversos casos ficou constatado que a redução das estruturas públicas com trabalho remoto não só era possível como demonstrou-se recomendável. Desonera e agiliza.
Exemplo de que o enxugamento e racionalização dos gastos e das estruturas são possíveis vieram dos próprios parlamentos brasileiros nas respectivas esferas da federação. Para proteção dos seus membros os três níveis do poder legislativo – Câmara Federal e Senado, Assembleias estaduais e Câmaras Municipais – funcionaram e/ou funcionam remotamente e deliberando via on-line, através de plataformas digitais. Ora, se há maneiras de atuar sem a presença física de seus membros, qual a razão para manter as enormes estruturas de prédios, gabinetes, apartamentos funcionais, passagens aéreas e um número excessivo de assessores após a pandemia? Se quando mais a população precisa de seus agentes a forma remota está sendo eficaz para a atividade congressual, por que não será em tempos de calmaria? De pós-pandemia?
E esse raciocínio vale também para as robustas estruturas do poder judiciário, ministério público, tribunais de contas e os inúmeros órgãos do executivo. Com o trabalho home office em razão da pandemia, os governos municipais, estaduais, federal e entidades das administrações indiretas economizaram bilhões de reais com combustíveis, serviços de manutenção, despesas de custeios variadas, deslocamentos, pagamentos de diárias, hotéis e passagens áreas que deixaram de acontecer.
Para a própria proteção, os agentes públicos encontraram formas alternativas ou mais tecnológicas de trabalhar. A Neopolític@ nos leva a refletir se tais formatos não seriam também medidas de proteção do erário público e um alívio tributário para o sacrificado contribuinte brasileiro.
6. O ‘cidadão.com’ quer vez e voz institucionalizada
Outras questões se colocam neste contexto: o exercício do próprio mandato como instrumento de representação popular num cenário onde o eleitor – como um ‘cidadão.com’, tem todas as ferramentas para agir diretamente junto ao poder central através da internet, plataformas digitais, redes sociais e outros mecanismos.
A eleição com votação presencial, o período de votação da eleição em um só dia, as consultas populares com efeitos vinculantes (plebiscito e referendo), a necessidade de partidos políticos numa sociedade fracionada em opiniões conflitantes, o financiamento público de projetos eleitorais privados, o formato de federação com centralismo exacerbado, o papel a ser desempenhado pelos poderes legislativos com funções obsoletas e ritos ultrapassados sem maior relevância, a divisão entre os poderes do estado num modelo que a própria realidade a desqualifica e que pouco ou quase nada contribui para o funcionamento estatal, o ativismo judicial no vácuo da representação política, o processo eleitoral com custos elevadíssimos num ambiente tecnológico que permitiria a construção de modelos com baixíssimas despesas, o gigantismo do Ministério Público quase em substituição ao poder popular e soberano de fiscalização das coisas públicas, entre outros, são temas que a Neopolític@ busca debater, aprofundar, dissecar, elaborar e reformular.
Com o objetivo de simplificar os mecanismos e de aproximá-lo dos indivíduos para que possam participar diretamente do processo político na sua completude com maior legitimidade, interesse, agilidade, sem a necessidade dos tradicionais intermediários herdados do antigo e modelo liberal, a Neopolític@ questiona e polemiza estas e outras temáticas.
7. A democracia em xeque
Na verdade, esse processo de desprestigio do modelo vem de longa data, e os questionamentos sobre a eficácia da política no sistema democrático partidário e representativo crescem a passos largos. A internet e as redes sociais trouxeram novos ingredientes, altamente complexos, enfraquecendo ainda mais o formato que conhecemos.
O regime democrático tal qual foi construído ao longo dos últimos séculos está sendo desmontado – mesmo que involuntariamente – pelas novas tecnologias da informação. Somos impactados pelo poder crescente da internet, dos smartphones e das redes sociais, que alteram comportamentos de conduta, de serviços, das relações interpessoais, econômicas, trabalhistas, comerciais, educacionais, entretenimento e tantas outras atividades. E ainda dotam os indivíduos de instrumentos comunicacionais e de acesso à informação como jamais se observou na história da humanidade.
A instantaneidade, a elevadíssima concentração de informações, a rapidez imensurável na transmissão de dados e a decodificação dos mesmos, e a ausência de fronteiras no mundo virtual transformaram a maneira coletiva de convivência das pessoas, ferindo de morte as bases de organização social sobre e para as quais a democracia como regime político foi concebido.
A excessiva fragmentação das referências ideológicas, morais, religiosas, sociológicas, psicológicas e científicas, com o afloramento das diferentes visões de mundo entre os indivíduos, e o protagonismo dos cidadãos no mundo virtual se sobrepondo às limitações do mundo real, criaram um estado de quase total impermanência social com o qual o sistema democrático não está preparado para lidar. É um novo mundo que se descortina, o da sociedade liquida tão bem observada por Zigmund Bauman.
8. A nova realidade
A predominância do mundo virtual sobre o real no campo da divulgação e disseminação das ideias políticas favorece o surgimento de movimentos informais e efémeros, mas poderosos, que brotam e se desfazem com grande rapidez, mas que alteram o ambiente político determinando o resultado das eleições. E provocam consequências duradouras – para o bem ou para o mal. Fragilizam os governos e suas plataformas. Esses movimentos, aliados ao forte protagonismo individual e as sabotagens/traquinagens dos fakes news, tornam obsoletos os partidos e a própria representação política em seu formato tradicional, clássico.
A política passa a ser reprodução desses recortes momentâneos e não mais dos programas estabelecidos ou dos compromissos consolidados de grupos ou instituições permanentes, como os partidos, entidades ou trajetórias de vida. O imediatismo como fenômeno político se agiganta para dominar de vez a cena!
As barreiras e limitações sociais e econômicas da vida real, as dificuldades de mobilização nas ruas, a lentidão dos processos convencionais de argumentação, de decisão ou de construção de projetos estão levando o exercício político da cidadania para o espaço virtual. Nele, a igualdade se impõe imediatamente ignorando origens, raça, credo, condições econômicas, regiões, sexo, trabalho ou qualquer outra referência. O engajamento político nas redes sociais se sobrepõe às identidades partidárias costumeiras e aos seus líderes. A virtualidade oferta um campo neutro e sem limites de qualquer natureza para sua ocupação, com suas próprias dinâmicas de utilização. Sem regras ou normas, esse novo espaço público está em constante mutação. Turbinado pelas novas tecnologias, que evoluem em profusão, os espaços virtuais inibem ou praticamente anulam certos aspectos das condições reais da vida. E uma de suas principais vítimas é a política clássica e formal na qual a democracia ocidental foi construída e ainda se sustenta, às duras penas.
9. Os desafios se agigantam: Neopolític@
Como manter os cidadãos vinculados a um mundo político formal e real inerte, quando esses mesmos indivíduos se fortalecem como cidadãos virtuais (cidadão.com), quase apátridas, num ambiente livre de compromissos permanentes e de lealdades ideológicas ou comportamentais?
Se as redes sociais permitem a manifestação direta, qual a necessidade de partidos e representantes eleitos? Estas são, entre outras, as grandes questões a serem superadas pela democracia como sistema político. Talhada para conduzir relações estáveis a partir de instituições consolidadas num ambiente de regras e de normas de condutas próprias do mundo real, o modelo democrático que conhecemos se esvai como algo supérfluo, sem efetividade ou utilidade.
Reinventar a democracia em tempos de protagonismo dos ambientes virtuais será a tarefa mais hercúlea no campo das ciências relacionadas à política. A Neopolític@ emerge como segmento da ciência política preocupada com este cenário imprevisível. Os grandes desafios serão a garantia da liberdade de expressão autêntica, a limitação dos poderes dos governantes, a construção de espaços equilibrados para debates e de processos de decisões ancoradas nas redes sociais e no ativismo virtual difuso e líquido, entre outros temas e fatores.
10. Eis a grande questão!
Tudo nos leva para um caminho tão complexo quanto incerto, mas inevitável. A democracia como a conhecemos sobreviverá aos novos tempos?
CITAÇÕES:
(1) BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
(2) ANDRADA, Antônio Carlos Doorgal de. Computocracia – O déficit democrático da globalização. Belo Horizonte: Armazém de Ideais, 2007.
(3) ‘Podemos discordar da ideologia capitalista e do que ela tem proporcionado, e de fato muitos discordam. As injustiças que a economia de livre mercado provoca são indisfarçáveis e se agigantam diante de nós, causando mortes e destruição, desigualdades e misérias, guerras e confrontos. Aliás, no mundo globalizado em que vivemos o desenvolvimento tecnológico e a internet vem possibilitando extraordinário avanço do sistema, a ponto de a economia de todo o planeta estar hoje sob o seu implacável domínio, direta ou indiretamente’. ANDRADA, Antônio Carlos Doorgal de. Computocracia – O déficit democrático da globalização. Belo Horizonte: Armazém de Ideais, 2007.
(4) ANDRADA, Antônio Carlos Doorgal de. Computocracia – O déficit democrático da globalização. Belo Horizonte: Armazém de Ideais, 2007.
(5) ANDRADA, Antônio Carlos Doorgal de. Computocracia – O déficit democrático da globalização. Apresentação, Marcos Vinicios Vilaça. Belo Horizonte: Armazém de Ideais, 2007.
(6) BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.