Revisitando a história

Toninho

O fogo impingido à estátua do bandeirante paulista Borba Gato trouxe à tona uma questão que remonta às nossas raízes.

Borba Gato foi um admirado bandeirante paulista que no século XVII desbravou os sertões e contribuiu para o domínio colonial português de terras inexploradas.

Nestes empreendimentos, fez uso de violência, e caçou indígenas e negros.

Naqueles tempos, a história refletia a versão da classe dominante, quase sempre os vencedores.

Os vencidos, na maioria miseráveis, índios, negros e caboclos, não tinham voz e eram esquecidos…

Hoje, estudiosos e segmentos sociais questionam a condição de heróis desses pioneiros da interiorização do país. E com as redes sociais, diversos desses grupos acadêmicos, populares e políticos ganharam vez.

O silêncio imposto no passado agora é rompido nas vozes de outros!

Inquestionável que a ação extremista de atear fogo a um bem público deve ser condenada e reprimida. Inaceitável!

Entretanto, o excesso de alguns não pode ser argumento para tentar impedir a discussão aberta e democrática dos nossos episódios históricos.

Não se trata de disputa ideológica de direita e esquerda. As novas gerações têm o direito de conhecer a verdade sobre a história da construção da brasilidade, da nossa formação como nação.

E somente com um debate transparente, envolvendo todas as partes, poderá ofertar esta visão abrangente e mais real das nossas origens.

Não dá mais para se acomodar na versão dos colonizadores. O Brasil profundo também precisa ser ouvido.

Em todo o mundo, há movimentos e reações semelhantes. Protestos e ataques contra monumentos alusivos as figuras históricas e seus símbolos não são incomuns. Ao fim da Segunda-Grande Guerra Mundial as imagens nazistas de Hitler, do fascismo de Mussolini e do regime japonês dos camicases foram defenestrados. Durante a queda do comunismo no leste europeu inúmeros símbolos daquele regime foram jogados ao chão. O Muro de Berlim virou um amontoado de ruínas, e estátuas de líderes políticos e ditadores identificados com o comunismo simplesmente foram liquidados.

Figuras do passado ligados ao escravismo foram destruídos ou removidos pelos próprios governos por pressões da sociedade. Um dos casos mais famosos recentemente envolveu a figura do navegador Cristóvão Colombo, considerado por diversos grupos como o responsável pelo início do genocídio indígena na América, cuja estátua fora decapitada em Boston e derrubada em Richmond em 2020, nos Estados Unidos. No mesmo ano a estátua de John McDonogh, empresário colonialista, em Nova Orleans, teve o mesmo destino. Já no Oregon, uma série de protestos nas universidades derrubou duas estátuas de Alexander Phimister Proctor, que fazia referência aos pioneiros europeus da colonização.

No Reino Unido, a estátua em homenagem ao traficante de escravos Edward Colston também foi lançada num rio por manifestantes. Em 2014 a maior estátua do líder comunista Lenin foi derrubada em Kharkiv, na Ucrânia. Em 2016 outra estátua de Lenin naquele país, na fronteira com a Bielorrússia. Na cidade de Antuérpia, no norte da Bélgica, uma estátua do rei Leopoldo II foi vandalizada depois de protestos anti-coloniaistas. Leopoldo protagonizou inúmeras atrocidades durante o colonialismo europeu na África, principalmente na atual República Democrática do Congo.

A formação de uma identidade nacional passa por escolhas de heróis, símbolos, hinos, histórias. No Brasil, o conjunto destas escolhas tentou representar o que se considerava, na visão da elite dominante, o melhor dos três elementos: o indígena, e seu amor à natureza, a força de trabalho do negro e a inteligência do branco. Nesta lógica, o negro serviria apenas para trabalhar e o indígena não passaria de um contemplador. Já o branco representaria a racionalidade construtora do país. Neste processo histórico reducionista, distorcido e obtuso ocorreu o apagamento da memória negra e indígena.

Não se trata de reescrever a história para negar o papel dos símbolos já consagrados. Faz-se necessário revisitar nossa história para inserir ao lado deles outros líderes e figuras heroicas, tão representativas quanto eles, que foram varridos dos livros educativos e do alcance de quase todos.